Pelas biografias, contra um tabu brasileiro

Daniel Feix

A biografia está para a literatura assim como o documentário está para o cinema. Ainda que tudo seja linguagem, reelaboração, artifício, ambos os gêneros guardam especial conexão com a realidade. Ninguém lê uma biografia sem ter estabelecido uma espécie de pacto com o escritor segundo o qual aquilo que este está narrando de fato aconteceu, ou, no mínimo, representa um acontecimento real com fidedignidade. Roger Odin, teórico francês do cinema, define a maneira como o autor propõe esse pacto com o termo modo de enunciação - que, é claro, pode ser subvertido, daí a existência de, por exemplo, o que já foi chamado de docudrama e, na literatura, de ensaio memorialístico, entre outros hibridismos.

Ocorre que os filmes documentais que forem reportagens (extremamente fidedignos) serão, em geral, pobres do ponto de vista da linguagem. Com os livros biográficos o que se estabelece vai na direção contrária: quanto mais o relato aproximar o leitor do que ele utopicamente entende como a recriação fiel de um fato ou momento histórico, mais festejada será a obra. Essa discussão pode parecer distante ou até tola para quem não escreve e apenas consome esse gênero literário, mas, ao menos para mim, perpassou todos os 15 anos dedicados à elaboração de Teixeirinha - Coração do Brasil. E segue presente, a cada retorno recebido de algum leitor.

Nem todos os personagens, fatos e momentos históricos biografados são iguais, longe disso, mas posso afirmar, pela experiência que tenho, como autor, jornalista, pesquisador e também leitor, que o relato vale pelo que descreve e também por si só, ou seja, pela linguagem, pela reelaboração, pelo artifício. Reviver o real, ou conhecê-lo em toda a sua complexidade, é uma utopia, que só pode ser plenamente realizada no âmbito da subjetividade de cada um. Não existe uma única realidade.

A primeira vez que escrevi sobre Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha (1927-1985), foi em dezembro de 2002, em uma reportagem que, como narro no texto de Apresentação, serviu de ponto de partida para o trabalho de produção do livro realizado entre 2004 e 2019. Ao longo de todo esse tempo, mesmo tendo consciência da impossibilidade de ser "definitivo" sobre certos aspetos e episódios da trajetória do biografado, sentia-me como o protagonista de O medo do goleiro diante do pênalti, o filme de Wim Wenders (adaptado do romance de Peter Handke): um eventual erro seria inevitavelmente insuperável e teria consequências trágicas.

Após a publicação, os fantasmas não cessaram de me atormentar, mas essa relação mudou bastante. Tornei-me mais seguro, o que talvez facilite uma nova jornada pelo universo das biografias, se essa apresentar-se para mim. A despeito disso, convido o caro leitor e a estimada leitora a refletir sobre uma particularidade do gênero no Brasil. Ressalto, em primeiro lugar, a natureza do personagem que biografei, um artista amplamente popular, capaz de mobilizar multidões a adorá-lo e a odiá-lo com (quase) a mesma força, que viveu intensamente suas paixões e seus desafetos de modo que a primeira reação diante de certos acontecimentos protagonizados por ele não pode ser outra que não a de espanto. Não é exagero. A vida de Teixeirinha, um dos grandes artistas da história do regionalismo brasileiro, foi absolutamente fascinante, sob vários aspectos.

Mas não seria assim, de algum modo, a vida de qualquer biografado minimamente interessante? Creio que sim. Todas as biografias valem a pena, ainda mais porque, reitero, biografia também é linguagem, reelaboração, artifício. Contudo, pelo que têm a relatar, algumas podem valer mais. É o caso de Teixeirinha, um artista que vendeu tantos discos a ponto de ser eleito o mais popular do país (na década de 1960), experimentou infortúnios beirando o absurdo em sua infância e adolescência, teve uma vida mambembe ainda jovem e, na fase adulta, estabeleceu relações repletas de contradições e enormemente midiatizadas (com parceiros que se tornaram inimigos, como Gildo de Freitas, ou o inverso, caso de Flávio Cavalcanti, mas, sobretudo, com sua companheira Mary Teresinha).

Então chegamos ao cerne da reflexão aqui proposta. Por que um sujeito com tal personalidade e impressionante trajetória só ganhou um livro biográfico nos moldes de Teixeirinha - Coração do Brasil mais de 30 anos após a sua morte?

Entre dezembro de 2002 e 2004, ou seja, entre a publicação da reportagem que daria origem ao projeto de livro e o início do trabalho de apuração propriamente dito, fui ao escritório de Millôr Fernandes para entrevistá-lo. Nada a ver com o projeto sobre Teixeirinha, por óbvio - era outro trabalho jornalístico que realizei à época. Por alguma razão que não consigo recordar, o assunto biografias veio à pauta da conversa. Millôr sentenciou o seguinte, que reproduzo conforme publicação na revista Aplauso nº 57, de março de 2004: "O gênero biografias encontra um obstáculo quase intransponível no Brasil: o compromisso com a instituição familiar, que está entranhado culturalmente do país. Não queremos ficar de mal com ninguém". Ou seja, se parentes de uma figura importante, artista, político, o que for, acham que essa figura não deve ser exposta com um livro biográfico, porque de alguma forma teria abalada sua imagem de alguém "de família" (hoje em dia, em alguns casos, talvez dê para substituir essa expressão por "cidadão de bem"), ela não o será - até porque o biógrafo não quer "ficar de mal com ninguém", para repetir os termos de Millôr. Os detentores dos direitos legais sobre a imagem de uma pessoa, invariavelmente filhos, irmãos, viúvos ou viúvas, têm o poder de preservar o que pode ser divulgado sobre ela, mesmo que se trate de algo de interesse público. Não à toa chegamos ao ponto de termos presidentes da República que jamais foram devidamente biografados.

O raciocínio de Millôr encontra referentes, entre outros, em Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda, mas a contundência com a qual referiu-se especificamente às relações familiares me pareceu única. Quando, nos anos seguintes, estabeleceu-se o debate sobre a chamada "Lei das Biografias", que derrubaria a necessidade de autorização das famílias dos biografados para a publicação de livros do gênero, surgiu um movimento conservador protetivo a algumas pessoas públicas, notadamente artistas da MPB - e seus familiares. Millôr, que já nem estava mais entre nós (morreu em 2012, dois anos antes da aprovação da lei), triunfava, como de costume: ali ficou escancarado o quanto, até mais do que indicava a vontade dos próprios biografados, em certos casos, alguns de seus familiares se mostravam incomodados com a possibilidade de alguma publicação independente ("não autorizada").

A intimidade familiar, no Brasil, é mais do que um tabu. É uma espécie de mito, tamanha sua idealização.

Minha avaliação particular é de que temos pouca tradição de produção de biografias no país menos por algum eventual desgosto do brasileiro pelo gênero e mais pela inviabilidade histórica de produzir livros biográficos ao longo das décadas. Felizmente, de 2014 para cá, um passo importante foi dado para mudar essa história.

Por fim, acrescido a essa proposta de reflexão, quero compartilhar mais um pouco do que relatei na Apresentação de Teixeirinha - Coração do Brasil. E do que Juarez Fonseca, jornalista decano da crítica musical em Porto Alegre, escreveu na orelha do livro. Juarez duvidou de que eu conseguisse biografar Teixeirinha - é o que está escrito na orelha! "Quando Daniel me disse, em 2004, que iria fazer a biografia de Teixeirinha, achei uma ótima ideia, mas duvidei que conseguisse. Era uma empreitada difícil, devido à quantidade de pessoas envolvidas com o personagem e às muitas polêmicas pelo caminho. A família vai criar mil dificuldades quando Daniel entrar no assunto 'Mary Teresinha', pensei, e sem Mary seria impossível contar a história de Teixeirinha", escreveu Juarez.

De fato, a empreitada não foi fácil, as polêmicas foram muitas, houve inúmeras dificuldades e, sim, sem Mary seria impossível. Perdi a conta do número de vezes em que conversei com Mary, tentando convencê-la a me dar um depoimento. Cheguei a romper com o núcleo familiar que detém os direitos sobre a imagem do biografado. Vasculhei arquivos, documentos e memórias alheias para alcançar personagens importantes porém até então desconhecidos de sua trajetória, sendo que mais de dez deles, dos quase cem com os quais falei, acabaram morrendo depois de me concederem entrevista e antes da publicação do livro, dado o avançado de suas idades (foram testemunhas da história de Teixeirinha em tempos tão remotos como as décadas de 1920 e 1930).

No fim, no entanto, a publicação só foi possível graças ao reestabelecimento da boa relação com os Teixeira que hoje controlam sua obra e o que for derivado dela. A mudança legislativa não garante, por exemplo, a impossibilidade de eventuais batalhas jurídicas. Nem todas as editoras, muito menos os biógrafos, estão dispostos a encarar esse tipo de desgaste. Mais do que alterar a letra fria da lei, é preciso mudar uma cultura existente no país. Isso leva tempo. A família de Teixeirinha, nesse sentido, foi visionária.

"Valeu a pena esperar", afirmou Juarez, mais adiante. E eu não queria terminar este relato sem me exibir com o que ele escreveu sobre o meu trabalho, na mesma orelha: "Esta biografia já nasce definitiva, pois a narrativa empolgante de Daniel não deixa nenhum detalhe para trás. [...] Do nascimento à morte, do avassalador sucesso ao epílogo dramático, o leitor acompanha a trajetória de Teixeirinha quase como se fosse um diário, tamanha a profusão de minúcias e fatos que, para muitos, passariam despercebidos, mas que, ainda bem, Daniel soube valorizar. Seu livro só engrandece Vitor Mateus Teixeira".

Essa última frase resume o que penso e defendo e que, espero, as famílias das figuras públicas entendam: uma biografia independente, construída a partir de investigação minuciosa e honestidade intelectual, mesmo que exponha trechos que de algum modo possam à primeira vista parecer desabonadores, tem tudo para engrandecer o biografado, seja ele quem for.


Daniel Feix é jornalista cultural com atuação em Porto Alegre desde 2000, atualmente é editor no jornal Zero Hora, crítico de cinema vinculado às associações de críticos do RS (Accirs) e do Brasil (Abraccine) e doutorando na UFRGS com pesquisa sobre os sintomas do fascismo no cinema brasileiro pré-Bolsonaro. É autor da biografia Teixeirinha - Coração do Brasil (Diadorim, 2019), indicada a livro do ano de 2020, categoria não ficção, nos prêmios Minuano (do governo do estado do RS) e AGES (da Associação Gaúcha de Escritores). Teixeirinha - Coração do Brasil (254 páginas, R$ 60) está à venda no site diadorimeditora.com.br.

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