Monte Carlo, Go

Fernando Ferrone

Pôs os pés no chão poeirento do ponto de ônibus e consultou suas mensagens. Nenhuma nova desde que partira, a mais recente ainda era a do agiota. Concisa, comercial: Raíssa, resposta até segunda. Senão, passo pro setor de cobranças.

Camila preferia não pensar o que esse código pudesse significar. Retornou à cidade natal para não ter que descobrir. O tio, dono do único posto daquele buraco, havia falecido e lhe legado o comércio. O advogado entrou em contato e, golpe de sorte, lhe participou que já havia um interessado. Um comerciante da capital, interessado em expandir para a cidade-satélite, propunha um milhão em dinheiro, no ato. "É aceitar sem pensar, negócio da China, a senhorita só tem essa chance: pagamento no ato". "No ato", as palavras repercutiam na mente de Camila. Uma dívida de um milhão, uma herança de um milhão. A chance de se redimir.

Mas que caralho de redenção, Camila se perguntava. Como se tivesse de fato contraído aquele dinheiro todo! O valor era muito menor: os juros e a contabilidade criativa do ex-cafetão, e atual agiota, que tinham elevado o valor àquele absurdo. Seu novo protetor lhe garantiu que era muito maior que isso, mas que conseguira negociar um abatimento. Um cacete: o filho da puta vai pegar a própria comissão. Mas era o que tinha: pelo menos, com a dívida saldada, poderia seguir com seus próprios projetos. Quais eram mesmo?

Guardou o celular e seguiu pelas calçadas desertas. Cidade de uma avenida só, e o posto do tio já podia ser divisado, logo após o ferro velho dos Ferreiras. Monte Carlo sequer aparecia no mapa. Talvez fosse ocupação ilegal, havia muitas por lá. Nada parecia ter mudado depois de tanto tempo. Caminha já quase sem fôlego quando ouve seu nome. Uma moça, do outro lado da calçada, acena e corre até ela. Empolgada, não espera a reação de Camila e a arrasta até uma cadeira de metal sob um toldo. Senta Camila e corre para dentro. Um frescor agradável vem de dentro, e Camila reconhece uma sorveteria. A moça, tentando arrumar os cabelos sob a toca, reaparece e lhe empurra uma taça de sorvete: "Pelos velhos tempos", diz e senta, alisando o avental. E Camila reconhece a amiga. Por um instante, esquece seus pensamentos sombrios e sorri. A amiga conduz a conversa. Fala do tempo que passou, de seu casamento, do abandono do marido, da sorveteria. Como se fosse um estigma, o assunto do acidente retorna: foram todos embora, ela diz, já sem tanta empolgação. Depois das mortes. Ninguém mais quis morar perto do ferro velho. Só seu tio.

arte: colagem, Katarina Martins

Depois de todos aqueles anos, Camila nem se lembrava da ocasião em que a cidade entrou no mapa. Recordou as equipes de televisão, as crianças que brincavam com os rostos cobertos do pó branco que emitia uma luz azul, a confusão no cemitério. Uma tragédia, a amiga prosseguia, o Devair largou o ferro velho depois que a sobrinha morreu daquele jeito horroroso. Emudeceu.

Essa terra, Camila quebrou o silêncio, essa poeira é amaldiçoada. Dora, a amiga, sustentou o olhar em Camila alguns instantes e olhou para um cachorro vadio do outro lado da rua. O animal seguiu e o silêncio ficou insuportável. É bom saber que você voltou, que perdoou seu tio, afinal. Camila olhou com ferocidade para Dora: dinheiro no mundo vai limpar a imundície que ele deixou em mim. Dora lhe enxergou o ódio estampado no rosto e o passado desfilou como uma vertigem diante dos olhos: Camila que chega correndo de manhãzinha com os cabelos ainda pingando, os olhos vermelhos esgotados de lágrimas, a mochila estufada das roupas enfiadas no afogadilho da fuga, o adeus.

O estupro foi bem na época do césio-137. Antes tivesse se contaminado com aquele pó brilhante, teria morrido e tudo acabado. A contaminação pelo sêmen do tio, a vergonha, a gravidez, a dor, o aborto. Aquilo não acabou nunca. Pegar o dinheiro e sumir. Em voz alta, anunciou que iria. Dora disse que a acompanharia, mas Camila não esperou.

No casebre, aos fundos do posto, encontrou uma velha sentada à porta. Ao avistar Camila, ela se levantou e a conduziu calada: a forasteira era de casa, e aguardada. O que restava do tio, um mero esqueleto recoberto de pele cinza, jazia sobre a cama, o lençol até o umbigo, no quarto iluminado só pela fresta da janela. No ar, o cheiro da degradação. A velha se colocou ao lado de Camila e lhe entregou um envelope estufado. Pra vosmecê, ele, apontou o queixo magro pro cadáver do tio, deixou. Um estranho ritual de velório, pensou Camila. Como se adivinhasse, a velha explicou: quis que vosmecê o visse assim, sem camisa, no quarto. Camila já não sentia o asco do passado. Contemplou o cadáver do tio e notou a grande mancha preta em seu peito, que a escuridão disfarçava. Ao centro, um pingente preso a um colar.

Apanhou-o e o inspecionou: um romboide escuro mais pesado do que aparentava. Ao girá-lo, notou a pequena abertura traseira. Protegida por um vidro, uma luz azulada brilhava dentro. Sentiu uma corrente elétrica percorrer o corpo. A mão abriu sem controle e o pingente caiu sobre os lençóis. A mancha escura bem no meio do peito. O pingente. A luz azulada. Olhou pra velha que apenas a encarou. Rasgou o envelope e um maço caiu: as cartas que o tio tentou enviar pra ela todos esses anos, rejeitadas.

Quando deu por si, a velha sumira e Dora estava a seu lado: Achei que você soubesse, o estuprador foi encontrado. Seu tio nem tinha voltado pra casa naquela noite. Foi um cara da tevê, confessou tudo. Deu no jornal.

Tantos anos odiando o homem que a criou depois que seus pais morreram. Uma vida acreditando que o vulto que a violentou compartilhava seu sangue. Olhou a mancha escura uma última vez e compreendeu.

Pediu para ficar sozinha. Apanhou novamente o romboide. Chumbo, moldado com as próprias mãos. Procurou por um martelo, mas que defunto manteria um martelo no quarto? Agachou-se, ajeitou o pingente no assoalho e num golpe o salto do sapato rompeu o vidro. Recolheu o pó azulado com a mão espalmada, murmurou uma prece, o lambeu, deitou-se ao lado do tio; e esperou.


Fernando Ferrone nasceu em Jardinópolis, SP, em 1981. Desde 2006, reside em São Paulo, capital. É tradutor e autor do romance à deriva (2017, edição independente). Publicou contos pelo site Ruído Manifesto, Vício Velho e Mirada. Atualmente, conclui seu segundo romance, intitulado A Longa Noite de B.

foto: Kit Gaion


Katarina Martins, licenciada em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes. Artista visual, multimídia, realiza trabalhos utilizando diversas técnicas, mas todos têm como base o papel. Sua produção é feita quase sempre a partir de fotografias, seja no campo da gravura, monotipia, pintura, colagem, costura ou processos fotográficos alternativos.

Para ler outros textos desta edição

Edições anteriores

© 2020 RevistaRia. A revista virtual da Ria Livraria - Rua Marinho Falcão, 58 - Sumarezinho - São Paulo/SP. 
Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora