Perigo, inflamável

Carlos Messias

A geração beat surgiu a partir dos primeiros hipsters. De verdade, se você olhar a origem do termo, hipster, verá que remete a um certo jeito urbano de se vestir, a uma propensão ao comportamento errático, hedonista, com liberdade nos costumes, curiosidade pelo sexo e pelas drogas, a uma maneira mais livre de pensar, e até a um jeito de falar, o jive, a linguagem das ruas, atributos que estavam associados à cena de jazz nova-iorquina da década de quarenta. Uma turma cool para cacete, o hip do hip, os hipsters originais, muito antes de ser modinha, oitenta anos mais cedo que os santa ceciliers.

Seduzidos pelos encantos do swing, e tão logo do bebop, metamorfose que testemunharam embriagados, Ginsberg e Kerouac, dois calouros da Universidade Columbia, entre outros colegas de classe, viravam a noite nos clubes de Greenwich Village ou do Harlem, antes de irem virados e dormir nas aulas da Universidade Columbia. Andavam com Burroughs, um trintão formado em Harvard.

Ginsberg, Carr e Huncke se queixavam que a poesia contemporânea estava confinada ao formalismo conservador e ao encastelamento burguês, distante da realidade e de seu tempo. Os beats acreditavam que a literatura não pertencia à academia, mas que seu lugar era nas ruas, nos pontos de ônibus e nos assentos de metrô, nos cafés, no debate político, nas leituras e saraus em bares como o West End, uma espécie de Merça da zona western nova-iorquina, ainda mais antigo, que realizava eventos como os que tão logo voltaremos a levar à Ria Livraria.

Eles não só incorporaram o bebop no ritmo, estilo e na forma de suas narrativas em prosa e verso, como mimetizaram a experiência intuitiva do jazz em uma expressão lírica, improvisada por método, libertária na forma, transgressora pelo conteúdo. Kerouac datilografando em rompantes de associação livre sobre bobinas de papel de arroz enroladas na prensa de sua máquina de escrever, desconsiderando vírgulas e parágrafos, como que recebendo uma entidade, possuído de modo a desafiar a elasticidade da linguagem.

Anos antes do Velvet Underground, os beats se aventuraram pelo submundo da Times Square, e depois pelas estradas dos EUA, com o intuito não só de absorver a realidade, como de capturar a oralidade. A estrutura poética das narrativas longas de Ginsberg acabariam influenciando, por exemplo, o futuro vencedor do Nobel de Literatura Bob Dylan, quando este pegou a guitarra elétrica, ou mesmo Lou Reed.

O termo beat, expressão para descrever um estado de espírito batido, judiado,foi apropriado do jive. Burroughs gostava de beat no sentido da martelada nietzschiana, que visa derrubar mecanismos mentais que aprisionam o homem. Inspirado por William Blake, mais recentemente por Aldous Huxley, ainda antes de Jim Morrison, seu método consistia em usar substâncias que alteravam a consciência, do ópio ao peiote, para abrir as portas da percepção e assim estudar empiricamente a realidade além das arestas da normalidade.

Foram rejeitados pela crítica; "isso não é escrita, é datilografia", nocauteou Truman Capote. Mas a régua do cânone, nesse caso, não estava com a academia nem com a imprensa.

A geração beat chegou à condição de clássico por resistir ao teste do tempo. Eles eram tão cool, que, embora tenham sido a fagulha do ideal paz e amor, rejeitaram os hippies, seus sucessores nos palanques de San Francisco, que cinicamente batizaram com o diminutivo de hip. Ainda assim Ginsberg tornar-se-ia uma espécie de guru hippie e colaboraria com experimentos alucinógenos de Timothy Leary; Cassady, o muso espiritual (e coisificador) dos beats, integraria o ônibus psicodélico de Ken Kesey.

Tão hip que foram a fagulha do Verão do Amor e seguiram a inflamar jovens, do punk até os dias de hoje. Tão à frente do seu tempo que, sem perceber, deram luz ao último grande movimento literário de contracultura da história. Uma combustão espontânea que se repete sempre que cada geração reage aos agentes do conformismo, encontrando nas palavras libertadoras de Burroughs, Ginsberg e Kerouac seu combustível.

Arte: Camila Kohn


foto: Mariana-Vieira-Elek




Carlos Messias
nasceu em São Paulo, em 1982. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é escritor, jornalista, tradutor e roteirista. Em 2019 publicou Consolação, seu romance de estreia, propósito que lhe serviu à criação do selo independente Prosaica. No ano anterior, traduziu para o português o livro The Sick Bag Song, de Nick Cave, pela editora Terreno Estranho. Como jornalista, foi editor de customizadas da Trip Editora e das revistas Billboard e VIP, redator da Folha de S. Paulo e repórter do jornal Agora São Paulo e da Revista MTV, além de colaborador de Bravo!, Rolling Stone, America's Quarterly e Veja SP, entre outros veículos. 


Camila Kohn é artista intermídia. Graduada em Artes Visuais pela Unesp, vive e trabalha em São Paulo. Entre pintura, colagem e instalação, tem como principal suporte o arranjo de objetos, criados e encontrados. Em 2018 apresentou a série de pinturas em grande formato Infiltrações e esteve na residência artística do grupo de pesquisa L.O.T.E. na Fundação Marcos Amaro (Itu, SP). Em 2019 e 2020 fez duas montagens de Três Relatos, a instalação itinerante em constante construção.  

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