Trabalho mata
Lucas Lazzaretti
Caminhamos,
fim de tarde, junto aos barrancos
amarronzados
que desciam por estradas perdidas.
Tivesse
reparado antes, não comentaria insensível
sobre
a envergadura pesada em suas costas.
Dos
tios era o mais novo, agora já velho,
pisando
sobre os cascalhos de seus irmãos mortos.
Batiam-lhe
as rugas ensolaradas nos cantos
de
um rosto que se ia em imitações
forçadas
de faces outrora conhecidas.
Voltei
faz mais de vinte anos,
falava
com a voz atravancada,
e
essa merda de lodo continua
firmemente
se aferrando às botinas.
Os
fios de história eram dos parentes conhecidos
e
mesmo com pigarros e cuspes disfarçados
evitava-se
pouco comentar aquele que se tentou.
Línguas
de tias vibravam para destilar
a
fábula de uma perseguição entre rabos e saias,
no
atrevimento bêbado, algumas ocasiões festivas,
de
afirmar que certas penugens de boceta
podem
mobilizar montanhas e exércitos.
Entre
nacos de carne e tossidelas
divergiam-se
os percursos narrativos
trilhados
pelos homens junto ao fogo.
Heroico,
mas sem empáfia, em geral contavam
a
coragem insensata em afastar-se
do
solo que fez parir e faz voltar.
Fiéis
de balanças invisíveis,
avô
e avó desconversavam a traição,
tal
como indicavam gritantes as sobrancelhas.
E
por mais que o exílio tenha encontrado termo
em
anos esquecidos em suas viradas
seguia
viva a mácula cravada
no
dorso do único que as terras com as mãos trabalhava.
Assim
que quando caminhávamos na tarde
interrompida
de silêncios gesticulados,
esguelhou
o tio a campina deserta,
vidrado
para além dos braços alquebrados.
Queria
ter permanecido na fuga
se
alguma fuga um dia houvera,
os
olhos cerrando o peito aberto.
Passava
um caminhão descarregado,
o
tio falando para as rosetas dos pés.
Terça
sim e terça não, pronto pro porto
mais
de oitocentos quilômetros daqui.
Subi
saltado pra fazer trajeto inverso
ao
conduzido pelas pobres solas antepassadas
na
esperança que a lida lá recompensasse
tudo
o que a prata aqui não justifica.
Por
dez anos alcovitei minha fé
para
um casório com o que sobrava de vontade.
Torturei
as costas, as mãos, as pernas
para
voltar quase tão leve quanto partira.
Os
barrancos, ao lado, com pedras pontudas.
Cansado
da carne e ossos fatigados.
Fez
sinal para que voltássemos
pelas
pegadas da vinda.
Nisso
voltamos, disse o tio,
porque
nisso podemos voltar.
O
trabalho, as palmas das mãos levantadas,
não
permite passado. Isso mata.
LUCAS LAZZARETTI publicou o romance Sombreir (7Letras, 2018), o livro de contos Placenta: estudos (7Letras, 2019), e livro de poemas Memórias do estábulo (Kotter, 2020) e o romance O escritor morre à beira do rio (7Letras, 2021). Realiza pesquisa de pós-doutorado em teoria literária na Unicamp.
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