Uma vez e outra também erro

Michelli Provensi

Ela vê meu mundo como um pano de fundo para pintar suas histórias. Eu raramente me faço de pincel, dá cócegas essa coisa de colorir.

Ela gosta das minhas andanças e do fato de não me encaixar em nenhuma terapia, me classifica de qualquercoisapédia e ri da minha capacidade de rememorar o que não importa.

Eu me debruço entre invenção da natureza e a evolução da beleza. Ela ri toda vez que faço rimas. Então pergunta sobre ornitologia, depois cessa o riso como se um alumbramento esfregasse pólen em sua garganta. Invado seu silêncio cantando Enya e comento que o rio Amazonas estaria roubando água do Orinoco.

Ela sempre vem com perguntas sobre beija flores. Eu sei que são conhecidos por guainumbi, colibri e tonkiri. Me observa feito um guaxinim entrando devagarinho na cozinha pra roubar comida de alguém, enquanto diz que só posso mesmo ser eu um beija-flor - porque tenho metabolismo acelerado - que nunca viu alguém comer de cinco a oito vezes por dia e continuar tão levinha. Eu mesma achava que era um gato porque como e cago. Os gatos cagam por semana o seu peso, eu nunca vi um beija flor cagando, mas sei que tem o coração grande, feito o dela também.

Ela adora que aprendi francês e inglês sozinha. Tenho inveja de como ela escreve bem em português. Ela usa o google para traduzir gris, eu pergunto pra siri quando uso esse ou este. Ela achou dois gatinhos num saco quando foi tirar o lixo e deu o nome de Bauhaus e Corbusier, certa que com esses nomes alguém da sua turma de arquitetura os adotaria - por mim chamaria os bichinhos de Darwin e Humboldt -,  teimou que seus bigodes remetem a uma fachada livre, igual a um prédio que viu na Argentina.

Ela tem uma memória fotográfica, eu fotografo bem.

Ela acredita que vagalumes são materializados pelo inconsciente coletivo. Eu da minha parte desconfio de parentes de besouros que só os machos são alados, mas acho lindo escuro e pirilampo. Ela odeia falar pirilampos. Diz que dá vontade de fazer pipi. Não pode nem ver as fontes do Ibirapuera que sente o mesmo, pega inimizade do ser que fizer shhhhh ao seu lado e não entra em piscina com cascata porque o chuá dá mijadeira. Eu me mijo de rir dessa noção dela. Às vezes penso em comprar um penico rosa. Acho coisa de velha ter um penico, mas no meio da noite faço xixi no copo de água vazio só pra não descer as escadas. Se deixar eu falo de xixi e insetos até apagar o último vagalume de Bertioga.

Ela sempre me pergunta se vai chover, uma vez e outra também erro. Fitzroy, capitão do navio Beagle e pai da previsão do tempo, suicidou-se em 1865. Naquela época o povo ficava bem puto quando ele errava. Por isso que nunca xingo as claudicadas da previsão meteorológica. Ouvi dizer que toda vez que alguém blasfema o clima tempo morre um marinheiro. Sei quando o tempo vai virar porque espirro criando alarme, sempre confiei no meu nariz. A primeira palavra que escrevi foi chuva. Até onde me lembro sempre choveu nos meus aniversários, às vezes nenhum convidado vinha para minhas festinhas de tanta chuva! Minha mãe então confeitava o bolo e me punha sozinha atrás para apagar as velinhas. Ela não gosta de comer bolo, mas toda vez que eu compro é a primeira a cortar uma fatia.

Vendi todas as minhas bolsas grandes para não carregar peso, tenho uma tendência de camelo, sofrer de cifose. Existem 3330 espécies de centopeias, certeza que ela se encaixa em alguma para querer ter tanto sapato. Tem até uma dúzia daqueles baixos, mas ela gosta mesmo é de um salto com o bico fino daqueles de matar barata na soleira. Sorte é pousar joaninha no ombro, azar é ter joanete no pé. O dela parece um pãozinho cru recém crescido de fermento, o meu na horizontal parece um cupim do zebu. Todas as coisas que não gosto foi um homem que inventou, entre elas absorvente e salto alto. Eu queria poder ficar de cócoras e menstruar onde bem quiser feito um chimpanzé.

Ela acredita que provavelmente não seríamos amigas na infância porque aparava as pernas das formigas com um alicate. As formigas carregam 10 vezes o seu peso nas costas. Eu carrego a culpa de ter sido a primeira assistente do meu irmão num incêndio em um formigueiro e de comer tatu-bola. Ela prometeu não tocar mais nesse assunto se eu imitar um tiranossauro. Ela monta o palco e puxa a cortina e espera eu rugir, eu emito um arrulho feito uma rolinha. 


MICHELLI PROVENSI é escritora que modela, modelo que patina e patinadora que escreve. Nasceu em Maravilha SC, hoje vive em São Paulo onde administra seu próprio brilho. 

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